quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O ENCANTO DOS ORIXÁS (por Leonardo Boff)


(O teólogo Leonardo Boff fala lindamente sobre a Umbanda, num texto que desfaz dogmas e preconceitos. A colagem é da ilustradora Andrea Ebert.)

"Quando atinge grau elevado de complexidade, toda cultura encontra sua expressão artística, literária e espiritual. Mas ao criar uma religião a partir de uma experiência profunda do Mistério do mundo, ela alcança sua maturidade e aponta para valores universais. É o que representa a Umbanda, religião, nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, em 1908, bebendo das matrizes da mais genuina brasilidade, feita de europeus, de africanos e de indígenas. Num contexto de desamparo social, com milhares de pessoas desenraizadas, vindas da selva e dos grotões do Brasil profundo, desempregadas, doentes pela insalubridade notória do Rio nos inícios do século XX, irrompeu uma fortíssima experiência espiritual.

O interiorano Zélio Moraes atesta a comunicação da Divindade sob a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas da tradição indígena e do Preto Velho da dos escravos. Essa revelação tem como destinatários primordiais os humildes e destituídos de todo apoio material e espiritual. Ela quer reforçar neles a percepção da profunda igualdade entre todos, homens e mulheres, se propõe potenciar a caridade e o amor fraterno, mitigar as injustiças, consolar os aflitos e reintegrar o ser humano na natureza sob a égide do Evangelho e da figura sagrada do Divino Mestre Jesus.

O nome Umbanda é carregado de significação. É composto de OM (o som originário do universo nas tradições orientais) e de BANDHA (movimento inecessante da força divina). Sincretiza de forma criativa elementos das várias tradições religiosas de nosso pais criando um sistema coerente. Privilegia as tradições do Candomblé da Bahia por serem as mais populares e próximas aos seres humanos em suas necessidades. Mas não as considera como entidades, apenas como forças ou espíritos puros que através dos Guias espirituais se acercam das pessoas para ajudá-las. Os Orixás, a Mata Virgem, o Rompe Mato, o Sete Flechas, a Cachoeira, a Jurema e os Caboclos representam facetas arquetípicas da Divindade. Elas não multiplicam Deus num falso panteismo mas concretizam, sob os mais diversos nomes, o único e mesmo Deus. Este se sacramentaliza nos elementos da natureza como nas montanhas, nas cachoeiras, nas matas, no mar, no fogo e nas tempestades. Ao confrontar-se com estas realidades, o fiel entra em comunhão com Deus.

A Umbanda é uma religião profundamente ecológica. Devolve ao ser humano o sentido da reverência face às energias cósmicas. Renuncia aos sacrifícios de animais para restringir-se somente às flores e à luz, realidades sutis e espirituais.

Há um diplomata brasileiro, Flávio Perri, que serviu em embaixadas importantes como Paris, Roma, Genebra e Nova York que se deixou encantar pela religião da Umbanda. Com recursos das ciências comparadas das religiões e dos vários métodos hermenêuticos elaborou perspicazes reflexões que levam exatamente este título O Encanto dos Orixás, desvendando- nos a riqueza espiritual da Umbanda. Permeia seu trabalho com poemas próprios de fina percepção espiritual. Ele se inscreve no gênero dos poetas-pensadores e místicos como Alvaro Campos (Fernando Pessoa), Murilo Mendes, T. S. Elliot e o sufi Rumi. Mesmo sob o encanto, seu estilo é contido, sem qualquer exaltação, pois é esse rigor que a natureza do espiritual exige.

Além disso, ajuda a desmontar preconceitos que cercam a Umbanda, por causa de suas origens nos pobres da cultura popular, espontaneamente sincréticos. Que eles tenham produzido significativa espiritualidade e criado uma religião cujos meios de expressão são puros e singelos revela quão profunda e rica é a cultura desses humilhados e ofendidos, nossos irmãos e irmãs. Como se dizia nos primórdios do Cristianismo que, em sua origem também era uma religião de escravos e de marginalizados, "os pobres são nossos mestres, os humildes, nossos doutores".

Talvez algum leitor/a estranhe que um teólogo como eu diga tudo isso que escrevi. Apenas respondo: um teólogo que não consegue ver Deus para além dos limites de sua religião ou igreja não é um bom teólogo. É antes um erudito de doutrinas. Perde a ocasião de se encontrar com Deus que se comunica por outros caminhos e que fala por diferentes mensageiros, seus verdadeiros anjos. Deus desborda de nossas cabeças e dogmas."

16 comentários:

Hazel Evangelista disse...

Obrigada pela partilha.
Fiquei encantada por saber a origem da palavra "Umbanda".

Om.... banda. Maravilhoso!

Unknown disse...

Bom Dia Celito!!

Olha a primeira vez que li um texto de Leonardo Boff que agora, não me ocorre o título do texto, foi na Faculdade quando cursava Psicologia, mas precisamente na aula de filosofia, eu fiquei encantada com suas colocações, pontos de vista sobre a teologia e a partir daí, fiquei sua fã.
Adorei o texto estendendo ao ultimo
parágrafo quando tão explícito se mostra, no encerramento do mesmo.
Maravilha!

Bjss
Livinha

Daniela Scheifler disse...

Eu também, achei demais isso! Lindo texto do Leonardo Boff. Adoro ele. Obrigada por partilhar.

Acho esse sincretismo religioso e popular uma das coisas mais belas do nosso Brasil, desse povo cheio de espírito, desse nosso Brasil de todas as cores. E como bem disse a Sandrá de Sá, em nós brasileiros, no nosso sangue, de fato ou simbolicamente, corre sangue crioulo.

Marcelo, estou seguindo você no Twitter sou a @Danielas. Quando escrevo isso lembro sempre da frase do @Carpinejar: 'acabou a paranóia, pois agora de fato as pessoas estão seguindo você' hehehe

beijos, beijos

angela disse...

Marcelo
realmente um texto lindo e muito legal ter sido escrito por ele.
beijos

Meio Ambiente e Educação Ambiental disse...

OI Dalla,
eu adoro L. Boff. Na minha área, educação ambiental, ele é como fosse nossso heroi!
bjs,
Eli

Vanessa Valadares disse...

Texto bonito, ponto de vista respeitado. Adorei sua palavras sobre o fato de vc ser teólogo e falar da umbanda. Concordo que Deus se comunica por outros caminhos.
Beijokas

Anônimo disse...

Sempre muito bom ler Leonardo Boff!
bjs.

Violeta disse...

É pena que haja muita desinformação acerca da Umbanda, religião digna, manifestamente bela na sua espiritualidade e comunhão com o divino.
Não conhecia este texto de Boff. Agradeço por compartilhá-lo generosamente.
E olhe que Leonardo Boff teve como seu Orientador Acadêmico, nada menos do que o atual Papa.

Até logo*

MARCELO DALLA disse...

Queridas, que belos comentários!
Fico feliz com essa boa receptividade, eu sou completamente apaixonado pela Umbanda.

Vou procurar conhecer mais o trabalho de Leonardo Boff.
Bjos, grato pelo carinho!

Elias Mendes disse...

Sou filho de Oyá

Unknown disse...

Um texto com uma assinatura excelente - Leonardo Boff. Abraço.

Astrid Annabelle disse...

Marcelo!
Muito bom este texto. Sou fã do Leonardo Boff faz tempo.
Parabésn pelo post!
Beijo
Astrid Annabelle

L. disse...

Marcelo seu Blog continua indo bem :D

Se quiser fazer uma visita no meu Blog novo:

http://www.entendendoastrologia.blogspot.com/

Obrigado.

Maria de Fátima disse...

Olá Marcelo, gostei de ler este post.Fiquei a conhecer a origem da Umbanda.Obrigada por esta partilha de conhecimentos.Beijocas.

Amauri Mendes Pereira disse...

Que beleza de espírito e desejo sincero de convivência harmoniosa. Um caminho que vem sendo trilhado por Leonardo Boff há tempos. Me parece que ele comete o equívoco de tomar a Umbanda a partir apenas de uma das vertentes que constituíram. Há outras visões de como surge a Umbanda, além da narrativa de sua revelação em Niterói-início do século XX. Algumas vêm do nordeste do Brasil e de regiões remotas do sudeste. Foram processos sociais muito amplos, intensos, densos que criaram a diversidade de crenças e práticas religiosas que compartilham o "guarda-chuva conceitual" Umbanda. M`Bundo, por exemplo (é de se notar a proximidade dos nomes)é uma derivação do tronco linguístico N`tu (gente, ser humano) amplamente compartilhado em quase todas as regiões do continente africano. É bom pensar, também, que a hegemonia entre a população negra era de cosmogonias e cosmologias iorubanas, as que chegaram mais tardiamente no Brasil, sofreram menos tempo, e mais localizadamente, os rigores da escravidão. Os "Bantus" tinham suas "tradições" e referenciais. Há quem diga que a Umbanda teria surgido da articulação gradual e por diferentes caminhos e jeitos dessas diferentes "tradições". Ainda que mescladas, interagindo, com a força política-institucional, mas também ritualística e social, do Candomblé. Parece que esse magma de manifestações de gente sofrida e obstinada em vivenciar sua espiritualidade de maneiras próprias vai se espalhando por quase todas as regiões brasileiras.
AXÉ amoroso para todas-os.

Rafael Hernandes disse...

Esse texto é muito bom, Leonardo Boff esta de parabéns, mas o grande mérito não esta apenas em por tal idéia em palavras sobre um papel, também há méritos em divulga-las.

Luz e Paz

Rafael d´Ogum

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