O Sonho de Névoa e Vidro
Aquele foi um dia comum, mas à noite sonhou com uma cidade feita de vidro... e um encontro que parecia aguardá-lo há muito tempo. Torres translúcidas erguiam-se entre véus de névoa, e o ar tinha o cheiro de chuva. Às vezes via o interior das casas, mas bastava um passo para que tudo se tornasse reflexo. Entre os espelhos, uma silhueta o observava. Era ela! A princípio apenas um contorno indistinto, como lembrança prestes a se formar. Aproximou-se e viu que seus gestos se repetiam do outro lado da parede: o mesmo olhar, o mesmo movimento das mãos. Quando ergueu o braço, o vidro se dissolveu.
O Sonho das Duas Luas
Mais um sonho estranho e imprevisto: nesse, o céu ardia em tons de laranja e violeta. No alto, duas luas observavam o pôr do sol como sentinelas silenciosas. Ele caminhava pela praia, o vento salgado misturando-se a lembranças que não sabia nomear. Ao longe, ela o esperava sentada numa pedra, o olhar fixo no horizonte. Quando se aproximou, ela disse: “Achei que você não viria.” Ele sorriu. “Eu sempre venho... só nunca sei quando.”
O Sonho Suspenso
A distância dos meses até o fez se esquecer desses sonhos estranhos. Até que aconteceu mais uma vez: sonhou com um céu repleto de dirigíveis... e sabia que ela estava lá. Cada um flutuava em silêncio, envolto por nuvens douradas, como cidades que haviam desistido da terra. Ele embarcou sem saber como — apenas sabia que precisava encontrá-la antes que o zepelim mudasse de curso. Os corredores longos e curvos tinham janelas que refletiam outras naves cruzando o firmamento. Ela o esperava no convés. “Estamos acima do tempo”, disse, e sua voz vinha de várias direções. Lá de cima, o mundo era azul, e o céu, um labirinto de balões, nuvens e torres flutuantes. “Cada dirigível é uma cidade”, explicou. “E cada cidade sonha uma versão diferente de nós.”
Ele quis saber em qual delas viviam de verdade, mas o motor começou a falhar e a nave oscilou. “Não olhe para baixo”, ela pediu. Ele olhou — e viu, lá embaixo, centenas de outros “eles”, repetindo o mesmo encontro em outros céus. Quando voltou o olhar, ela já se afastava, leve, presa a um balão menor. “Lembre-se do som”, gritou antes de desaparecer na nuvem. O dirigível desceu devagar, adormecendo. Ele despertou com um zumbido distante, o motor ainda girando em algum lugar acima... ou dentro dele.
O Sonho dos Cristais Subterrâneos
Joaquim passou a procurá-la também durante o dia, nas ruas e nos bares. Nada. Achou que era loucura — e foi então que sonhou outra vez. Desciam por uma caverna sinuosa onde as paredes pareciam respirar. Reflexos âmbar, turquesa e verde-esmeralda pulsavam de dentro das rochas, e o som da água ecoava como se o planeta tivesse coração. A cada passo o ar se tornava mais úmido, denso, cheio do cheiro de terra.
No centro, um templo erguia-se feito de cristal translúcido, vivo, vibrante. Ela estava diante de um altar mineral. Ao redor, milhares de fragmentos refletiam suas imagens — centenas de “eles”, cada um em gesto diferente, cada um lembrando algo que os outros esqueciam. “Cada cristal guarda a lembrança de uma vida”, disse ela, sem virar o rosto. “O problema é que esquecemos qual delas é a verdadeira.”
Ele tocou um dos cristais. A imagem se rompeu e, dentro dela, viu a cidade de vidro — o primeiro sonho, intacto. “Estamos voltando”, murmurou. “Não”, respondeu ela, “estamos chegando mais fundo.” Então retirou do chão um pequeno cristal que pulsava luz branca. “É o som que você ouviu no dirigível”, disse, colocando-o em suas mãos. “Quando acordar, vai se lembrar.”
O Sonho dos Corredores Infinitos
Como era possível conhecer alguém apenas em sonho? Na próxima vez, tentaria alguma informação concreta. Então sonhou. O aeroporto se estendia até o horizonte, como se o mundo inteiro tivesse se transformado em sala de embarque. As esteiras rolantes moviam-se em silêncio, mas ninguém avançava. Todas as pessoas estavam de costas — homens, mulheres, crianças — caminhando numa coreografia sem rostos. Ele tentava ultrapassá-las, mas quanto mais se apressava, mais distante ficava o portão.
No alto, os painéis trocavam de idioma e de cor a cada segundo. O alto-falante repetia números que não pertenciam a nenhum voo. Sabia que procurava alguém, embora não lembrasse quem, até vê-la no fim do corredor — o único rosto visível. Ela vinha em sua direção, contra o fluxo de gente sem face, tentando alcançá-lo.
“Espere!”, gritou, mas o som se dissolveu, tragado pelo ruído dos passos. Ela estendeu a mão, quase o tocando, quando uma porta de vidro se fechou devagar entre os dois. “O embarque é agora”, disse com voz trêmula. “Para onde?”, perguntou ele. “Para o que esquecemos.”
O Sonho do Clube Mutante
Joaquim sabia que conhecia Heloísa, mas o fato de nunca encontrá-la causava ansiedade. Estava apaixonado por alguém que não sabia se existia. Nesse sonho, entrou num bar de luzes pulsantes, o ar espesso de fumaça e perfume doce. As paredes mudavam de cor a cada batida, e o chão se movia em ondas leves, como se o lugar respirasse. No balcão, ela o esperava, vestida de vermelho, segurando um copo que mudava de forma a cada gole. “Você demorou”, disse. A voz dela parecia vir de dentro da música. “Eu sei quem é você... Heloísa”, respondeu.
Quando se aproximou, o bar já era outro lugar. As luzes diminuíram, o som virou murmúrio e os copos se tornaram xícaras. Agora estavam num café antigo, com mesas de madeira e cheiro de pão quente. Lá fora, chovia. Ele tentou se lembrar de quando haviam se conhecido. “Foi aqui?”, perguntou. “Não exatamente”, respondeu ela. “Mas quase sempre começa assim.”
Enquanto falavam, o café se desdobrou em uma sala familiar. Os móveis eram os dele, as cortinas, as mesmas. Ela tocava os objetos como quem reconhece um sonho antigo. “Você está sonhando”, disse. “E você?”, perguntou ele. “Sou a parte que ainda não quer acordar.”
O Sonho em Chamas
Quase dois anos haviam se passado desde o primeiro sonho. Joaquim cansou de esperar. Sonhou mais uma vez: a casa estava igual à realidade, cada livro em seu lugar, cada quadro na parede, o cheiro de café recém passado. Caminhava devagar, temendo que qualquer movimento a fizesse desaparecer. Ela estava no sofá, sorrindo com um cansaço doce. “Finalmente consegui te trazer pra casa”, disse. Ela o olhou em silêncio, como quem já conhece o destino de um sonho.
Por um instante, tudo pareceu real — o vento na janela, a respiração dela, o toque morno da pele. Ele pensou: se eu conseguir fazê-la ficar, amanhã ela existirá de verdade. Mas o ar mudou. Um estalo, depois outro. A luz vacilou nas paredes. As chamas começaram pequenas, brotando das molduras, dos livros, dos cantos do teto.
O fogo se espalhou pela sala. Ela se levantou para fugir, ele tentou alcançá-la, mas o calor o deteve. “Não vá embora”, pediu. “Fique.” Ela sorriu, um sorriso que parecia mais lembrança do que presença, e respondeu: “Estou ficando. Só não do jeito que você pensa.”
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