Sonhos Recorrentes – O amor que atravessa os planos

Joaquim observa um céu crepuscular cheio de dirigíveis e torres flutuantes — imagem inspirada na série Sonhos Recorrentes.

“Sonhos Recorrentes” é um conto de Marcelo Dalla sobre encontros que desafiam o tempo, o espaço e a lógica do despertar. Joaquim vive uma sequência de sonhos em que busca Heloísa — uma mulher que parece existir apenas entre o sono e a memória. Cada sonho revela fragmentos de um amor que atravessa dimensões e questiona o que é real e o que é lembrança.


 O Sonho de Névoa e Vidro

Aquele foi um dia comum, mas à noite sonhou com uma cidade feita de vidro... e um encontro que parecia aguardá-lo há muito tempo. Torres translúcidas erguiam-se entre véus de névoa, e o ar tinha o cheiro de chuva. Às vezes via o interior das casas, mas bastava um passo para que tudo se tornasse reflexo. Entre os espelhos, uma silhueta o observava. Era ela! A princípio apenas um contorno indistinto, como lembrança prestes a se formar. Aproximou-se e viu que seus gestos se repetiam do outro lado da parede: o mesmo olhar, o mesmo movimento das mãos. Quando ergueu o braço, o vidro se dissolveu.

A voz soou como um eco: “Você demorou.” Ele respondeu sem saber se falava ou sonhava: “Achei que não me lembraria do caminho.” Por um instante, viu o próprio rosto refletido nos olhos dela. “Não tente me tocar”, disse. “Ainda somos apenas reflexos.” A imagem se dissolveu devagar, e o ar do quarto parecia trazer a umidade do sonho — como se a névoa tivesse encontrado uma forma de entrar.


O Sonho das Duas Luas

Mais um sonho estranho e imprevisto: nesse, o céu ardia em tons de laranja e violeta. No alto, duas luas observavam o pôr do sol como sentinelas silenciosas. Ele caminhava pela praia, o vento salgado misturando-se a lembranças que não sabia nomear. Ao longe, ela o esperava sentada numa pedra, o olhar fixo no horizonte. Quando se aproximou, ela disse: “Achei que você não viria.” Ele sorriu. “Eu sempre venho... só nunca sei quando.”

Ela tentou falar, mas o vento levava as palavras. Entregou um bilhete. As letras tremiam: Espere por mim. Eu vou aparecer... mas você precisa acreditar. A maré subia depressa, apagando as pegadas. As duas luas se refletiam na água, e por um instante pareciam se tocar antes de se afastarem. Ele levantou o olhar, mas ela já não estava. O vento soprou forte, e o bilhete se desfez entre seus dedos, deixando no ar o som do papel rasgando — leve como respiração.


O Sonho Suspenso

A distância dos meses até o fez se esquecer desses sonhos estranhos. Até que aconteceu mais uma vez: sonhou com um céu repleto de dirigíveis... e sabia que ela estava lá. Cada um flutuava em silêncio, envolto por nuvens douradas, como cidades que haviam desistido da terra. Ele embarcou sem saber como — apenas sabia que precisava encontrá-la antes que o zepelim mudasse de curso. Os corredores longos e curvos tinham janelas que refletiam outras naves cruzando o firmamento. Ela o esperava no convés. “Estamos acima do tempo”, disse, e sua voz vinha de várias direções. Lá de cima, o mundo era azul, e o céu, um labirinto de balões, nuvens e torres flutuantes. “Cada dirigível é uma cidade”, explicou. “E cada cidade sonha uma versão diferente de nós.”

Ele quis saber em qual delas viviam de verdade, mas o motor começou a falhar e a nave oscilou. “Não olhe para baixo”, ela pediu. Ele olhou — e viu, lá embaixo, centenas de outros “eles”, repetindo o mesmo encontro em outros céus. Quando voltou o olhar, ela já se afastava, leve, presa a um balão menor. “Lembre-se do som”, gritou antes de desaparecer na nuvem. O dirigível desceu devagar, adormecendo. Ele despertou com um zumbido distante, o motor ainda girando em algum lugar acima... ou dentro dele.

Nos dias seguintes, Joaquim pensou no sonho mais de uma vez. Não entendia quem era aquela mulher, nem por que a sensação de perda parecia tão real. Às vezes tinha a impressão de sentir o mesmo zumbido no silêncio da casa — um eco vindo de algum lugar entre o sono e a vigília.


O Sonho dos Cristais Subterrâneos

Joaquim passou a procurá-la também durante o dia, nas ruas e nos bares. Nada. Achou que era loucura — e foi então que sonhou outra vez. Desciam por uma caverna sinuosa onde as paredes pareciam respirar. Reflexos âmbar, turquesa e verde-esmeralda pulsavam de dentro das rochas, e o som da água ecoava como se o planeta tivesse coração. A cada passo o ar se tornava mais úmido, denso, cheio do cheiro de terra.

No centro, um templo erguia-se feito de cristal translúcido, vivo, vibrante. Ela estava diante de um altar mineral. Ao redor, milhares de fragmentos refletiam suas imagens — centenas de “eles”, cada um em gesto diferente, cada um lembrando algo que os outros esqueciam. “Cada cristal guarda a lembrança de uma vida”, disse ela, sem virar o rosto. “O problema é que esquecemos qual delas é a verdadeira.”

Ele tocou um dos cristais. A imagem se rompeu e, dentro dela, viu a cidade de vidro — o primeiro sonho, intacto. “Estamos voltando”, murmurou. “Não”, respondeu ela, “estamos chegando mais fundo.” Então retirou do chão um pequeno cristal que pulsava luz branca. “É o som que você ouviu no dirigível”, disse, colocando-o em suas mãos. “Quando acordar, vai se lembrar.”

O templo começou a tremer. A luz recuou para dentro das pedras. Eles correram pela galeria, mas a saída se desfez em líquido. Joaquim atravessou — e acordou com o nome e o reflexo da sua imagem gravados na mente, como se a lembrança tivesse enfim encontrado forma. Heloísa.


O Sonho dos Corredores Infinitos

Como era possível conhecer alguém apenas em sonho? Na próxima vez, tentaria alguma informação concreta. Então sonhou. O aeroporto se estendia até o horizonte, como se o mundo inteiro tivesse se transformado em sala de embarque. As esteiras rolantes moviam-se em silêncio, mas ninguém avançava. Todas as pessoas estavam de costas — homens, mulheres, crianças — caminhando numa coreografia sem rostos. Ele tentava ultrapassá-las, mas quanto mais se apressava, mais distante ficava o portão.

No alto, os painéis trocavam de idioma e de cor a cada segundo. O alto-falante repetia números que não pertenciam a nenhum voo. Sabia que procurava alguém, embora não lembrasse quem, até vê-la no fim do corredor — o único rosto visível. Ela vinha em sua direção, contra o fluxo de gente sem face, tentando alcançá-lo.

“Espere!”, gritou, mas o som se dissolveu, tragado pelo ruído dos passos. Ela estendeu a mão, quase o tocando, quando uma porta de vidro se fechou devagar entre os dois. “O embarque é agora”, disse com voz trêmula. “Para onde?”, perguntou ele. “Para o que esquecemos.”

As luzes piscaram, o corredor se duplicou e ela desapareceu na multidão de costas. Ao despertar, ainda ouviu o eco distante do alto-falante chamando nomes que jamais existiram. E então ouviu mais uma vez o nome dela: Heloísa. Sim, esse nome existia.


O Sonho do Clube Mutante

Joaquim sabia que conhecia Heloísa, mas o fato de nunca encontrá-la causava ansiedade. Estava apaixonado por alguém que não sabia se existia. Nesse sonho, entrou num bar de luzes pulsantes, o ar espesso de fumaça e perfume doce. As paredes mudavam de cor a cada batida, e o chão se movia em ondas leves, como se o lugar respirasse. No balcão, ela o esperava, vestida de vermelho, segurando um copo que mudava de forma a cada gole. “Você demorou”, disse. A voz dela parecia vir de dentro da música. “Eu sei quem é você... Heloísa”, respondeu.

Quando se aproximou, o bar já era outro lugar. As luzes diminuíram, o som virou murmúrio e os copos se tornaram xícaras. Agora estavam num café antigo, com mesas de madeira e cheiro de pão quente. Lá fora, chovia. Ele tentou se lembrar de quando haviam se conhecido. “Foi aqui?”, perguntou. “Não exatamente”, respondeu ela. “Mas quase sempre começa assim.”

Enquanto falavam, o café se desdobrou em uma sala familiar. Os móveis eram os dele, as cortinas, as mesmas. Ela tocava os objetos como quem reconhece um sonho antigo. “Você está sonhando”, disse. “E você?”, perguntou ele. “Sou a parte que ainda não quer acordar.”

A música voltou, agora um piano suave, vindo de algum lugar acima. As luzes piscaram, o ar mudou de textura. Ele piscou também e, num instante, estava deitado em sua cama. O som do piano ainda vibrava na memória. Na poltrona ao lado, um copo vazio, idêntico ao do bar, refletia a luz da manhã.


O Sonho em Chamas

Quase dois anos haviam se passado desde o primeiro sonho. Joaquim cansou de esperar. Sonhou mais uma vez: a casa estava igual à realidade, cada livro em seu lugar, cada quadro na parede, o cheiro de café recém passado. Caminhava devagar, temendo que qualquer movimento a fizesse desaparecer. Ela estava no sofá, sorrindo com um cansaço doce. “Finalmente consegui te trazer pra casa”, disse. Ela o olhou em silêncio, como quem já conhece o destino de um sonho.

Por um instante, tudo pareceu real — o vento na janela, a respiração dela, o toque morno da pele. Ele pensou: se eu conseguir fazê-la ficar, amanhã ela existirá de verdade. Mas o ar mudou. Um estalo, depois outro. A luz vacilou nas paredes. As chamas começaram pequenas, brotando das molduras, dos livros, dos cantos do teto.

O fogo se espalhou pela sala. Ela se levantou para fugir, ele tentou alcançá-la, mas o calor o deteve. “Não vá embora”, pediu. “Fique.” Ela sorriu, um sorriso que parecia mais lembrança do que presença, e respondeu: “Estou ficando. Só não do jeito que você pensa.”

O incêndio tomou conta da casa, devorando tudo em estalos e explosões. Quando abriu os olhos, o quarto ainda tinha o cheiro de fumaça. As cortinas estavam intactas, mas o coração ardia. Então ouviu o som — um estalo leve, o mesmo timbre do vidro vibrando — e compreendeu que o sonho não havia terminado. Ainda podia ouvir a voz dela e pensou: agora sim, sei que vai acontecer.


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