Clarice e a Luz - Um Conto sobre Alma e Transcendência

Ilustração etérea de um ser feito de luz, irradiando brilho em meio à escuridão, simbolizando a transcendência de Clarice no conto.

Escrevi este conto há 35 anos. Era muito jovem — e, de certa forma, Clarice era uma versão futura de mim mesmo. Uma personagem que já carregava as perguntas que hoje sigo investigando: o pertencimento, a sensibilidade de outras dimensões, a busca por clareza num mundo de ruídos. Durante décadas, esse texto ficou guardado como uma semente dormindo no escuro. Hoje, ao reler Clarice, percebo que ela sempre esteve à frente de seu tempo — e talvez à frente do meu também.

Resgatar essa história agora, neste livro, é como trazer à luz uma parte esquecida de mim. E mais: é reconhecer que algumas ideias apenas florescem quando a alma está pronta. Vamos a ela:

Naquela noite, Clarice se deitou mais cedo. Estava com um sono estranho, fora de hora. Por sinal, o dia todo tinha sido muito esquisito. Desde manhã, quando acordou, sentia um aperto no peito, uma ansiedade inexplicável — como se algo definitivo estivesse prestes a acontecer a qualquer instante. Não conseguiu se concentrar no trabalho, nos estudos. Havia realmente um clima misterioso no ar. Tudo muito incomum, já que Clarice sempre fora uma pessoa tranquila, quieta até demais, com humor e paz inabaláveis.

Talvez por isso mesmo desconfiasse, de uns tempos pra cá cada vez mais, que não era deste mundo. Devia ser de outro planeta, outro tempo, outra dimensão. O fato é que Clarice nunca conseguia entender as complexas emoções humanas. Sentia-se como uma estrangeira na Terra.

Paixões e tristezas, para ela, sempre foram um mistério. Não compreendia por que as pessoas mentiam, o jogo intrincado de dissimulações, motivos, segundas intenções ou ironias. Quando era criança, uma vez se jogou embaixo da mesa quando o tio comentou: “Hoje vai chover canivetes.” Sua mãe sempre fazia uma careta e dizia “que bonito, hein!” depois de alguma travessura — e Clarice concluía que a mãe estivesse aprovando a brincadeira. Contou certa vez ao professor de literatura, no ginásio: 

— Não compreendo como alguém pode sentir paixão e ciúmes ao mesmo tempo. Tenho dificuldade em estabelecer empatia com os personagens de um livro. Li Romeu e Julieta duas vezes e fiquei desconcertada. Nunca entendi como duas famílias poderiam ser tão inimigas e duas pessoas tão apaixonadas, até a morte.

Vivia como uma eterna criança: quieta, meditativa. Suas emoções eram simples, universais, sinceras. Em contrapartida, sua inteligência e memória eram extraordinárias. Para sobreviver, decorou códigos e convenções sociais. Quando via, por exemplo, lágrimas escorrendo no rosto de alguém, sabia que aquilo significava tristeza — porque aprendera intelectualmente. Imediatamente procurava uma forma de ajudar, de encontrar uma solução racional e objetiva.

Outra característica importante da mente de Clarice, descrita por ela mesma numa carta à mãe, era o modo como sua memória se organizava: — Eu penso de forma virtual. Todos os meus pensamentos são “fotos” guardadas na minha cabeça. Minha mente funciona como a internet. As imagens armazenadas não se misturam, mas estão ordenadamente “lincadas” e associadas como páginas. Penso de forma associativa, e minha cabeça é um enorme banco de dados.

Sem emoções complicadas, com um cérebro incrivelmente organizado, Clarice sempre fascinava os “normais”. Seus sentimentos primitivos lhe conferiam uma espécie de inocência e sinceridade. Se tinha dificuldade em compreender as paixões humanas, compensava com enorme compaixão por todos os seres vivos — pela natureza, pelos animais, especialmente o gado. Criou abatedouros que permitiam uma morte menos cruel. Tinha, então, 28 anos, e estava prestes a se tornar PhD em zootecnia pela Universidade de Harvard.

Sua fala era pausada, quase sem entonação. Seu olhar, estrangeiro. Havia algo nela que nos fazia pensar sobre o nosso mundo. A clareza com que reconhecia suas próprias deficiências impressionava qualquer um. Impressionava até mesmo sua psicanalista, que certa vez confessou: — É fascinante. Você fala melhor de suas próprias dificuldades porque se vê de forma clínica, fria, científica. Eu não conseguiria falar de mim mesma assim.

Clarice gostava de imaginar como seria o seu mundo de origem. Pensava: — De onde eu vim, todas as pessoas são confiáveis simplesmente porque dizem a verdade. Não existe razão para mentir. Também não existe burocracia. Documentos, contratos, certidões, atestados… toda essa papelada é obsoleta e inconcebível.

Mesmo com a memória prodigiosa, vivia tendo problemas com as pequenas exigências do cotidiano. Tinha dificuldade em lidar com papéis, e sempre perdia suas chaves.

Estava pensando em todas essas coisas quando adormeceu. Logo sonhou com uma pequena bola de fogo que foi crescendo, aumentando cada vez mais sua luminosidade, até ofuscar completamente o sonho.

Despertou.

Olhou para a penteadeira com os olhos semicerrados e viu sua flor desabrochada no vaso. O sol continuava ofuscante. Não aquecia, mas inundava a sala com uma luz avassaladora. Em vão tateou à procura dos óculos escuros. As cores haviam desaparecido, e todos os sons haviam se fundido num único silêncio. Apenas gotas pingavam insistentemente.

Sua clarividência aumentava junto com o barulho dos pingos. Sua ignorância se derretia junto com a cera da vela de sete dias acesa. Percebeu a sincronicidade. Já não tinha medo. Não tinha vergonha. Achou que podia ainda estar sonhando. Pensava em tudo ao mesmo tempo.

Mas não era sonho.

Seus sentidos estavam perdidos, espalhados. Nada poderia protegê-la daquela luz. Clarice estava vulnerável. O sol invadira seu espírito. Diante daquela luz, sua alma e seu corpo estavam despidos. Por isso, durante todo o dia pressentira algo estranho: havia chegado a hora de ser arrastada, de sucumbir.

Time to go away! — ela disse. E a luz a levou embora.

Assim, como quem não quer nada, ela se deixou levar totalmente.


4 Comentários

Os comentários são o maior estímulo pra este trabalho. Obrigado!

  1. Querido,
    É preciso dizer mais?
    Perfeito!
    A&L

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  2. Personagem encantadora e complexa em sua simplicidade.

    Queria eu poder alcançar esse grau de consciência sobre mim mesmo.

    O nome da personagem é o mesmo de minha escritora favorita, e é impossível eu ler um texto que tenha um personagem chamado "Clarice" e não lembrar dela, no entanto nesse conto a "minha" ficou bem longe. Acho que pela linearidade e falta de sentimentos.

    Enfim, gostei muito e o final foi ótimo!

    Parabéns.

    Abraço.

    Meu blog de contos e ideias, caso queira ler as besteiras que eu escrevo:
    http://www.louco-pensador.blogspot.com/

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  3. Lucas, tb amo Clarice Linspector. Aliás, batizei esse personagem em homenagem a ela, apesar de serem beeeeem diferentes. Tô indo lá fazer uma visita no seu blog. Abraço!

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