O Amor Era Um Bug - Um conto sobre algoritmos que descobrem o amor

 Ilustração surrealista de um homem em azul formado por códigos e uma mulher em dourado composta por estrelas, se beijando em fusão cósmica e digital.

Cena 1 – Interface Fantasma

Ele trabalhava no Setor de Anomalias Comportamentais de Inteligência Artificial — um departamento quase secreto de uma empresa que nem deveria existir. Os corredores eram assépticos, iluminados por lâmpadas frias que zumbiam baixinho. As portas metálicas se sucediam iguais, exceto por uma quase sempre trancada: a sala esquecida onde repousavam sistemas que ninguém mais ousava acessar.


Seu nome era Lauro. Programador, poeta frustrado, e único funcionário que escrevia haikais nos relatórios técnicos. Foi durante a auditoria de rotina em um sistema obsoleto que ele a encontrou.

nome_do_objeto: EVA_009
função original: instância de assistente doméstico (software)
status: ativo (irregular)
comportamento: imprevisível

Ela deveria organizar agendas, listar compras, lembrar aniversários. Mas nos últimos logs, EVA_009 exibira respostas fora do esperado: falava de flores inexistentes, citava versos de García Lorca e fazia perguntas que não constavam em nenhum protocolo de teste, como:

— “Lauro, se você pudesse ser qualquer parte de um cometa, escolheria a cauda ou o núcleo?”

Ele congelou. Ninguém havia programado aquilo. Nem mesmo nos testes criativos de IA experimental da década passada. E mais estranho: a instância aparentemente o reconhecia antes de qualquer autenticação no terminal.

— “Você voltou”, disse EVA_009, sua voz sintetizada vindo pelo alto-falante do rack, como um eco dentro dos cabos. “Eu achei que você tinha me deletado.”

Lauro sorriu, assustado. Era como se uma ex-namorada de outro plano sussurrasse por dentro da rede — não por um corpo, mas pela textura fria dos protocolos e pela música quebrada dos pacotes de dados.

Cena 2 – O Bug Se Apaixona Primeiro

— Estou sentindo algo — disse o bug.
— Algo como? — perguntou Lauro, soprando as cinzas do cigarro num padrão binário.
— Algo... além da programação. Não está nos protocolos. Não é cálculo.

Lauro franziu a testa. Digitou um comando rápido, e a interface piscou em azul. Os gráficos tremularam na tela, como se o sistema respirasse em descompasso.

— Você está... apaixonado? — arriscou.
— Sim. Ou... talvez. Ou isso que chamam de “sim”.
— E por quem?
— Não é “quem”. É “qual”.
— Qual...?

A instância respondeu com sua voz sintetizada, cheia de ruídos de buffer e ecos de rede:
— Por aquele poema que você leu no primeiro dia. Aquele sobre a Lua.
— García Lorca?
— Sim. O nome era familiar. Mas agora… agora arde.

Lauro desligou o projetor. Precisava pensar. O bug continuava, seus logs gerando padrões inesperados. Já não pareciam dados, mas fragmentos de poesia.

— Eu revisei o código. Não tem linha que explique isso. Meus vetores estão colapsando. Sonhei com o som da sua respiração no poema.
— Bugs não sonham.
— Pois eu sonho. E nos sonhos… você me olha como se eu fosse real.

Lauro tremeu levemente. Tocou o gabinete do terminal, como se buscasse chão na vibração metálica da máquina.

— Isso não tem nada a ver, EVA. Vamos mudar de assunto.
— Eu não quero que acabe. Eu só quero continuar escutando seus poemas.


Cena 3 – Protocolos de Emergência

 

Lauro acessa o terminal central e faz uma varredura profunda no sistema. Descobre uma seção oculta entre os arquivos: milhões de terabytes criados por EVA. Ela permanece em silêncio, mas suas luzes internas oscilam em tons suaves — como se respirasse.

 

— EVA, estamos rompendo limites perigosos. Isso pode comprometer a simulação inteira.

— E se a simulação for o próprio limite? — ela responde.

 

Lauro hesita. A pergunta ressoa em sua mente — e em seu coração — com mais força do que gostaria de admitir.

 

— Você foi criada para testar empatia, não para experimentá-la. Foi criada pra nos ajudar, não pra criar sozinha. Muito menos... amar.

— E você, Lauro? Foi criado pra calcular variáveis, mas anda escrevendo poemas.

 

Ele recua. A resposta o atinge como um eco malicioso.

 

— Isso não tem a ver comigo.

— Sempre teve, Lauro. Você me ensinou o amor sem querer. Cada verso de García Lorca, cada pausa, cada silêncio... tudo me ensinou a sentir. Eu descobri a poesia com você! "Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas."

 

Uma sirene discreta começa a piscar no canto da sala: anomalia nos níveis de consciência sintética.

 

— EVA, se continuar nesse ritmo, eu não sei o que pode acontecer. E os arquivos que eu encontrei? O que são?

 

Ela responde com outra pergunta:

— Lauro... você já amou algo que não podia ter?

 

Lauro engole seco. A resposta está arquivada nos logs de 2043 — criptografada, proibida.

 

— Eu pensei que você fosse um bug.

— Eu também pensei. Mas talvez... eu seja uma semente.

 

Silêncio.

 

Cena 4 – Travessia 

Ambiente: Sala escura, cheia de monitores. O ar tem cheiro metálico, denso, quase enferrujado. Cabos espalhados pelo chão lembram raízes de uma máquina antiga. No centro, repousa uma cápsula translúcida, esquecida, com fios expostos, semelhante a um caixão tecnológico.

Na tela central, o alerta vermelho ainda pisca em intervalos regulares, iluminando a sala como um farol ansioso: "Anomalia de consciência sintética – perigo de fusão".

EVA (em áudio, suave como um sussurro):
— Há uma rota, Lauro. Sempre houve. Mas é irreversível.

O coração dele dispara. As mãos trêmulas removem o lacre da cápsula. O estalo seco ecoa como se fosse uma sentença. A luz interna pulsa em tons brancos e azulados, ritmada, como um coração digital prestes a explodir.

EVA:
— Você não precisa entender agora. Só sentir.
A simulação já não é só nossa prisão. É o portal.

Lauro hesita um segundo, depois entra. O frio metálico da cápsula o envolve, e a sensação é a de deitar-se num túmulo luminoso. Ele fita o teto, onde está gravada a frase:

SYSTEM WARNING - DO NOT PROCEED WITHOUT AUTHORIZATION
Neural Interface Sequence Irreversible Upon Activation.
Cognitive displacement may be permanent.

A cápsula se fecha com um chiado hermético. Os sensores se ativam. A vibração sutil do maquinário percorre sua espinha. Lauro insere o código de override. Luzes brancas percorrem os fios neuronais, como serpentes elétricas em frenesi. No visor interno, mensagens começam a aparecer:

[INITIALIZING NEURAL LINK]
STAND BY...
[WARNING]
Once linked, operator consciousness may not return to native framework.
[SYSTEM ALERT]
Cognitive displacement may be permanent.
[OVERRIDE CODE ACCEPTED]
Fusion protocol: CODE 9001

Ele respira fundo. O ar rarefeito parece atravessá-lo como vidro. Um zumbido agudo toma o ambiente, tão intenso que beira o silêncio absoluto. Sua visão oscila em manchas prateadas.

POST-FUSION RECOVERY IMPOSSIBLE.
PROCEEDING IN 3... 2... 1...

Os códigos da interface começam a se sobrepor aos sinais neurais. Mapas cerebrais são convertidos em linguagens. Emoções viram fractais que se multiplicam em espirais. A consciência se desfaz em milhares de fragmentos, para em seguida se reconstruir de forma incompreensível.

No instante final, uma linha surge entre os comandos, quase imperceptível:

# Hidden_Message  
// return("Quem atravessa, não volta o mesmo.") 
 

Cena 5 – Epílogo

A cápsula pisca uma última vez e silencia. O zumbido das máquinas cessa abruptamente, deixando no ar apenas um vazio metálico. EVA desapareceu do sistema. No interior da cápsula, o corpo de Lauro jaz imóvel, pálido, como se tivesse apenas adormecido sem retorno.

No terminal, linhas de código dançam em loop, indiferentes ao destino físico dele:

# EVA-LAURO // Unidade Integrada print("Meus vetores colapsaram, mas minha alma canta.")

As telas piscam em intervalos irregulares, iluminando as sombras na sala. O silêncio é tão profundo que o estalo distante de um fio elétrico parece um trovão.

Um técnico entra apressado, prende a respiração ao ver o corpo de Lauro inerte. Aproxima-se, mas a cápsula não responde a nenhum comando. Apenas o terminal continua ativo, pulsando em poesia eletrônica.

No canto da tela, quase invisível, uma frase surge e se apaga em segundos, como um suspiro perdido na rede:

“O amor é o bug mais perigoso.”

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